Jogo do Tao em português
Lembro-me que foi no início de uma viagem de autocarro do Porto para Viseu, num dia frio de novembro de 2023, que o Raphaël me telefonou. Há muito tempo que eu ouvia falar no poder transformador do Jogo do Tao por parte de pessoas-chave no contexto do trabalho que faço em meio francófono e quando procurei formar-me para trazer o jogo para Portugal, as coisas não se alinharam facilmente. Foi o meu amigo querido Josué (Réseau Transition.be) que propôs que eu falasse com o coordenador da nova Académie Tao. A chamada telefónica com o Raphaël durou toda a viagem e foi uma experiência epifânica - ao desligar o telefone, era claro para mim que tínhamos feito um pacto de irmandade e que nos apoiaríamos desde então nos nossos projetos pessoais e profissionais, mesmo que não me lembre que tenhamos proferido estas palavras em voz alta.
Meses antes, durante o primeiro encontro da Assembleia Geral da Université du Nous (de que falo aqui) liguei-me profundamente a duas pessoas: o Romain - durante as horas de conversa sobre projetos, desafios de vida, falou-me do Jogo do Tao e de um processo em curso para amplificar o seu alcance - foi por ele que fiquei a saber da história de como o jogo está ligado à nascença da UDN; e a Camila, belga-brasileira, que, por uma razão desconheço, encontrei num abraço a transbordar de emoção, depois de uma das sessões desse mesmo evento, sem nunca termos trocado uma palavra antes.
Demoro-me na reflexão de como há projetos que começam com encontros importantes. São encontros com sentimentos de alinhamento que reverberam durante anos e são basilares da tal irmandade de que vos falava ali acima. Enfim, antes de vos contar como foram os dois eventos do Jogo do Tao em Portugal, deixem-me falar-vos do jogo:
Mas afinal, o que é o JOGO DO TAO?
Este jogo é classificado como uma ferramenta de inteligência coletiva, de mudança cultural - tem o poder de criar processos de transição interior: processos de consciência e de regeneração individual e coletiva.
O Jogo do Tao foi concebido para apoiar aqueles que querem tornar-se agentes de mudança, respondendo ao apelo de um novo sentido de cidadania responsável por parte de uma franja crescente da população e propondo a ideia de que a vida é um grande jogo, essencialmente coletivo, que gira em torno do ‘EU’ e do ‘NÓS’, de forma complementar.
Neste jogo, ajudar um outro jogador é ganhar: o Jogo do Tao é a arte da troca e da cooperação, onde cada um se compromete a contribuir com a sua ajuda, a sua experiência humana e profissional, para a realização das missões propostas pelos outros jogadores. A colaboração é a regra, a competição está fora de questão.
A perspetivas diferentes dos outros jogadores são usadas para verificar a coerência do projeto de cada participante através de uma viagem por 4 mundos: o Mundo da Terra para clarificar o seu desejo; o Mundo do Fogo para identificar os medos e os obstáculos que o impedem; o Mundo da Água onde pode encontrar as qualidades e o apoio de que necessita; e finalmente o Mundo do Ar, o mundo dos rituais que precisa de pôr em prática para o realizar.
O Jogo do Tao em Portugal
Depois daquela primeira conversa com o Raphaël, durante a viagem do Porto a Viseu, muitas outras conversas se seguiram. Rapidamente, o sonho de colaborarmos e trazer o jogo a Portugal deixou de bastar.
A Rede Micélio (rede emergente de agentes de mudança em Portugal, ainda informal), numa parceria com a Académie Tao, organizou as duas primeiras sessões do jogo em Portugal com a intenção que este fosse o primeiro passo num projecto mais completo com o objectivo de difundir o jogo no território português. O segundo passo seria a formação de facilitadores do Jogo do Tao.
Experiência Tao
Eu raramente tenho a intenção de sonhar em grande mas às vezes excedo-me. Provavelmente por causa da inspiração inchada que resultou das conversas com o Raphael, contaminei muita gente em Portugal e, de repente, vi-me a braços com um grupo enorme de pessoas que demandava viver a experiência do Jogo. Contaminei também a minha irmandade que tem em comum esta ligação com o Tao: eles, inspirados, e sabendo que se esperava de mim responder a tal demanda, rodearam-me, apoiando-me, e a irmandade reuniu-se nesta configuração, pela primeira vez, em abril de 2024 - Académie Tao, Rede de Transição Bélgica Francófona, Université du Nous, Rede Micélio, Transição Network, juntos!
O Romain chegou primeiro a Viseu. Veio da Ilha da Reunião mal preparado para o ‘abril águas-mil’ de Portugal, uma semana antes do evento, para formar a Sofia e eu. Assim garantimos que haveria pelo menos 2 mesas a jogar em português. O Raphäel e o Josué facilitariam mais duas mesas em inglês. O Romain dar-nos-ia apoio durante as duas sessões de 3 horas, cada uma - 8 grupos, cada grupo com 5 ou 6 pessoas.
O dia do jogo seguiu-se ao encontro da Rede Micélio. A floresta do ‘Origens’ (um dos grupos/projetos de Transição de Portugal) já se tinha preparado para acolher muita gente, que viria dos quatro cantos de Portugal, em caso de mau tempo. Um grupo preparou tendas, as casinhas de madeira e uma caravana, refeições quentes e, imagine-se, a minha irmandade de homens estrangeiros fizeram a minha receita de pastéis de nata, às escondidas, acorrendo aos serviços de um par de cúmplices que me distraíam com coisas importantes que eu tinha que ver ou fazer muito longe da cozinha do telheiro.
Estávamos preparados para o mau tempo mas foi uma grande tempestade que tivemos no dia do evento - vento, trovoada, chuva a cântaros e um frio que feria os ossos. Esta foi mais uma daquelas histórias que eu costumo partilhar de resiliência desta linda comunidade de ‘transição’ (sentido lato), contada com humor, partilhando o maravilhamento que os participantes sentiram: todos os grupos completaram os processos cheios de profundidade, emoção, alguns deles, comicamente em tendas a cair, debaixo de chuva, na floresta de carvalhos em fúria, a proteger os tabuleiros e cartas do jogo dizendo - ‘É como se estivéssemos num navio, no mar! Não abandonaremos o barco!!!’ - e o Romain, molhado até aos ossos, a segurar a tenda como se da vela mestra de uma nau se tratasse.
O grupo que veio experimentar o jogo do Tao foi diverso mas houve muita convergência naquilo que me foi partilhado, da experiência dos participantes. Deixo-vos aqui três testemunhos:
''Gostei muito do jogo, na medida em que nos desafia a estabelecer ideias e ideais, cria forte conexão a nós próprios e também entre os participantes, coloca a sabedoria de cada um ao serviço de todos, é eminentemente reflexivo e generativo, permitindo um alinhamento precioso de cada um no seu Caminho de vida.
um jogo que é muito mais que isso pois coloca-nos no Jogo da Vida em união de caminhos com cada participante. A aprofundar e com gosto estou disponível a aprender mais.”
José Soutelinho
Audio do testemunho de Rita Marques
“Em Viseu, pude descobrir até que ponto o Jogo do Tao pode criar uma ligação profunda e ativar o poder da empatia, para além da língua. Estive com um grupo caloroso e amigável, numa pequena escola de madeira situada numa clareira entre as árvores. Apresentei o jogo em inglês, convidando as pessoas a exprimirem-se na sua língua materna, se assim o entendessem. O jogo permite-nos explorar a essência de quem somos, e é mais fácil expressá-lo na nossa própria língua. E foi o que aconteceu. Eu era o único que não entendia as palavras. Mas conseguia ver, sentir e apoiar. Foi muito comovente, as pessoas atingiram momentos de expressão e ligação profundos e autênticos, com o apoio do grupo. Ficámos ligados para além das palavras, à nossa humanidade e à nossa vontade de contribuir para a vida.”
Josué Dusoulier (facilitador)
Formação de facilitadores Tao
Passei o verão todo imersa na floresta do Origens, como no ano anterior. A experiência mostrou-me como o meu sistema nervoso central se regula quando eu vivo numa floresta 24 horas por dia, de pés nus na terra, a pautar os meus dias com os ritmos da natureza. Assisto também ao revigorar da própria floresta à medida que o projeto Origens faz a sua missão de regeneração do ecossistema. É difícil explicar como estar presente durante esse processo me impacta - reconheço o sentimento antigo de ter crescido assim, com o meu irmão e com os meus primos, sem barreiras que nos separasse do verde, da terra, e dos sons dos bichos. Lembro-me de que eu própria fazia parte do verde e da terra. Só à noite me lavava deles, para me deitar.
Cheguei no fim de junho preparada para trabalhar sem descanso, tanto na Transition Network como na preparação da formação de facilitadores do Jogo do Tao. Com a experiência do jogo, era bem claro que era importante formarmos facilitadores em Portugal. Seriam 12. A Camila, quem eu abracei infinitamente na assembleia geral da Université du Nous (UDN), seria a formadora, em representação da UDN. Eu e a Sofia faríamos a assistência na facilitação e sobretudo, na criação de um campo energético, de segurança e de conexão, seguindo a liderança da Camila. A formação estava marcada para Julho e, até lá, havia muito mais para fazer do que eu tinha imaginado!
Convém talvez explicar que o Jogo do Tao existe há muitos anos mas, por uma razão que desconheço, tem estado limitado à francofonia. Não há caminhos já traçados no processo de trazer o jogo para um novo território, com uma língua, um contexto cultural e económico diferentes. Ora, não havendo, há que inventar! Quem melhor para abrir caminhos do que a minha doce amiga/irmã Susana e eu? Nunca me diverti tanto a trabalhar com alguém como com ela - quanto menos condições se reúnem para fazermos um trabalho como deve ser, mais lhe achamos graça. Enfim, gente louca… Sorrio quando penso nas sessões de trabalho, na mesa debaixo do telheiro, eu a traduzir instruções e os textos das cartas, a Susana a trabalhar na paginação e na parte gráfica, com 45ºC, falhas de internet, o computador com vontade própria, textos com inconsistências. Foram horas de desespero e de ataques de riso como se de adolescentes nos tratássemos. O trabalho que fizemos ainda teve que ser melhorado mais tarde mas, no fim, pudemos fornecer todos os conteúdos da última versão do jogo em português aos novos facilitadores!
Os dois dias de formação começaram num círculo, na grande clareira da floresta. Aos 12 formandos vindos de norte a sul do país (e do Brasil!), juntaram-se dois adolescentes. Um deles, a minha filha mais nova. Sem que eu interviesse, depois de muito refletir, a Isabel (14 anos) pediu à Camila se podia participar nos jogos/exercícios de facilitação dos formandos. Mal sabia a Camila que, dando esta oportunidade à Isabel, nos proporcionou às duas uma experiência de vida que nunca vamos esquecer. O impacto foi grande para ela (que já deu frutos) e profundo para mim: assistir ao desabrochar de uma jovem mulher, assistir à expressão da sua essência e dos seus valores humanos, descolando-se de mim, da minha sombra, foi contrário à dor que se diz que uma mãe sente quando acontece. O contrário. Mesmo.
Os dois dias de formação acabaram num círculo, na mesma clareira da floresta. As partilhas foram profundas e houve muita resistência a que o nosso encontro se terminasse. Lembro-me que alguém disse que a experiência foi como um choque, uma estalada na cara. Lembro-me como todos nos sentimos ligados uns aos outros e prontos para usar o jogo como ferramenta de mudança. E lembro-me de como todos nós nos sentimos gratos e em admiração pela presença forte, íntegra, da nossa formadora - Camila.
Obrigada à Camila, ao Raphaël, à Académie Tao et ao Fond’action UdN.
Também agradeço, da parte de todos os novos facilitadores e facilitadoras, à Sofia (a nossa fadinha) e ao Projeto Origens!
NOTA: A nossa estratégia foi formar 12 pessoas e dar-lhes ferramentas para elas poderem ser autónomas a implantar o jogo em Portugal, mantendo o grupo coeso, em aprendizagem contínua. O grupo continua a encontrar-se, com e sem o acompanhamento da Camila, e uma parte dos facilitadores estão listados aqui. Se tiverem vontade de viver o jogo do Tao, inscrevam-se e procurem um facilitador perto de vocês!